sexta-feira, 31 de agosto de 2012

O SABOR VISUAL DE TIA ALICE



Alice de Souza era uma filha de meu avô paterno - do primeiro casamento dele. Mulher branca, loura do cabelo cacheado, baixa, rechonchuda, olhos azuis, lábios e rosto incrivelmente vermelhos. Em parte porque ao meio dia ela costumava rondar os quintais das casas de Barcelona, juntando restos de comida para alimentar cães e gatos de rua. Isso sem religião, sem ONG, sem esperar nada em troca, sem porra nenhuma! Era um dom. E dom vem encomendado por Deus... 

Alice - cuja tendência de moda resumia-se a um simples par de sandálias “franciscanas” e um coloridísimo surrado vestido de chita, com dois grandes bolsos – para muitos, não administrava muito bem sua razão total. Parecia que havia a falta de um pequeno “parafuso”, na cabeça, que ela teve a sorte de deixar em algum lugar. Será que foi pensando nela quem alguém escreveu que “só os loucos é que são felizes”? Para ser sincero, eu creio que a verdade é que a sina que trouxe nesta vida, não lhe permitiu ser compreendida. Era confundida a uma louca. Por razões que desconheço ela preferiu assumir, e com muita competência, o “personagem” que lhe impuseram. E assim viveu. E assim morreu... E quis o destino cruel que partisse deste planeta (com mais de 70 anos), derrotada pela diabetes, acompanhado de um câncer que a maltratou - e muito - nas dependências do Hospital da Liga Contra o Câncer Dr. Luiz Antônio, no bairro das Quintas, no final da década de 1980.

Minha tia, apesar da vida com dificuldades e limites, cozinhava muito bem. Tinha um tempero único. Fazia trabalhos artesanais em madeira (tinha muita habilidade em construir concha, para tirar feijão da panela, feita de quenca de coco seca, baladeira e outras artes) e gostava de ajudar o próximo. Naquela noite de segunda-feira, 10 de “Santana” de 1961 - em que escolhi para vir a terra cumprir meu sacrifício - foi ela o primeiro “anjo” que providenciou quase tudo, para que mamãe não me parisse sozinha. Depois fez “campanha” por agasalhos, leite e tudo o mais. Quando eu era criança ela sempre tinha “um dinheiro” (algo em torno de R$ 1,00 de hoje) para eu comprar pão doce e refresco na feira do lugar.

Alice adorava comer. E, mesmo de barriga cheia, ai daquele que não lhe oferecesse, ao menos, uma xícara de café. “Miserável!” seria a menor frase, dita por ela, para definir o sovina. Devido a seus problemas de diabetes, era rigorosamente “policiada” para não cometer excessos. Mas, quando lhe ofereciam alguma guloseima dizia: “Não diga a dona ‘diabética’ que vô cumer esse doce”. Ou: “Vô entrar nesse quarto escuro e cumer lá dento pra dona ‘diabética’ não vê”.

E um dia, voltando de uma longa caminhada nos arredores do município, chegou à casa de um irmão comentando (a linguagem é lá de “nóis”...):

- Passei na casa di “Antonhi” de Aru. Tavo cumendo um piru tão gostoso.

- Comesse Alice? – Perguntou meu tio Agaci.

No que ela respondeu:

- Não! Mas vi o povo tudo lambendo os dedo.  -  (fcb/cp)

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