Creio ter compreendido,
um pouco, o "universo feminino" quando conheci a história de Lilith.
A primeira mulher de Adão. Eu disse, "um pouco!" É idiota pensar que
a frase "a mulher enganou o diabo", seja referente a história de Eva.
Na verdade Lilith enganou o diabo. Depois enganou Eva, e Eva enganou Adão. Começou
alí, no Paraíso, a tradição da mulher fazer o homem de otário, bobo,
abestalhado, idiota, inseguro... Os poetas resumem tudo à uma única e lírica
frase: "sonhador"... Ah, eu me lembro de meu primeiro dia em Osasco
(SP). Parado em uma esquina da Avenida Dos Autonomistas, vi passar um ônibus da
Auto Viação Urubupungá. Pensa que foi fácil ler aquilo? Soletrei urururupungá,
ou coisa parecida. Achei o nome tão complicado que aceitei o desafio de
pronunciá-lo corretamente. Anotei em um papel e passei a treinar. Minha dislexia
me causa confusão com algumas palavras. Tanto para ler, bem como na hora de
escrever. Costumo botar consoantes, ou vogais, em excesso. Ou às vezes omito
uma ou outra letra, deixando frases incompletas. Também troco algumas delas.
Muitas vezes confundo grafia com fonética. Depois da emoção do primeiro
momento, volto e faço as correções necessárias. E se ela - a dislexia - faz
isso com letras, imagine com números... Em matemática sou um "zero à
esquerda"... Enfim, olhei aquele ônibus colorido: amarelo, verde, azul,
branco, preto, vermelho. Pensei "nordestino: "esse ônibus é mais
enfeitado do que jumento de cigano"... Naquela ensolarada segunda-feira
(coisa rara na cidade de São Paulo), de março de 1984, eu acordara cedo. Pouco
depois das 5 horas. Estava ansioso. Confuso. Arrumei minha segunda mala às
pressas. A primeira, já pesadamente lacrada, continha livros, revistas, e souvenir
para minha família. Nem de longe poderia imaginar que, aquele dia, eu estava cotadíssimo
- e sem qualquer outro concorrente - ao Oscar, na categoria de "Melhor
Imbecil do Ano". A segunda mala estava sendo ocupada com minhas roupas.
Dei uma última espiada pela janela. Do Alto de Pirituba vi grande parte da
imensa e assustadora cidade paulistana - Lapa, Limão, Casa Verde, Santana,
Perdizes e outros bairros que minha vista alcançava. Peguei a câmara fotografia.
O cenário merecia um registro meu. Com enorme tristeza descobri que o filme
acabara. Só me restava guardar toda aquela vastidão de prédios, vias e alguns
lugares verdes, na "pasta de arquivo" da memória. De tempos em tempos
poderia eu abrí-la por algum motivo que valesse a pena. Lembro bem de um avião,
estacionado à porta de um hangar junto a uma rodovia. Anhanguera, creio.
Concentrado no curto tempo que me restava, sentia a emoção de saber que no dia
seguinte reencontraria minha família, minha terra, meus amigos. Paradoxalmente
senti uma enorme sensação de tristeza, que corria paralela, por causa da perda
dos muitos amigos que surgiram naquele período de quase dois anos na terra de
Adoniram Barbosa. Mas era hora de voltar. Meu compromisso havia sido concluído.
Nada mais me prendia alí. Exceto..., "S"! "Depois voltarei para
resolver minhas 'pendências' emocionais", pensei. Saí daquela casa
arrastando uma mala e meu companheiro de trabalho, a outra. Ele me acompanhou
até a pracinha da Igreja de São Luiz no centro daquele bairro. Ainda tive tempo
para mais uma olhada no Pico do Jaraguá, onde três vezes havia subido sua
tortuosa estrada. Em uma delas, a pé junto com amigos. Foi uma daquelas
aventuras que só a impetuosidade da juventude provoca. Agora, parado naquela
praça, via só partes das enormes torres das antenas de TVs de São Paulo. Não
consegui um táxi. Aflito, por causa do meu pouco tempo (teria que chegar antes
do meio dia na Avenida Francisco Moranto), subi em um ônibus da Urubupungá, que
seguia em direção à Osasco. Não era o caminho certo mas, estava sendo esperado
na Estação de trem da cidade. O coração só faltava sair pela boca. A ansiedade
dominava todo o meu ser. Eu esperava os acontecimentos daquele dia há um ano. Exatamente
um ano - março à março. O ônibus cruzou o limite dos dois municípios, mas pouco
aproveitei da paisagem. Estava muito tenso por causa da expectativa daquele
encontro. Quando finalmente desci do coletivo, carregando minhas passadas
malas, no Largo de Osasco, uma "perua" Kombi me aguardava no
estacionamento da loja Jumbo Eletro. "S" desceu do carro sorrindo.
Nos "saudamos" com os olhos. Apenas com os olhos. Naquele momento era
o suficiente. Sua mãe também veio ao meu encontro. Sorrisos e abraços. Entrei
no carro, me acomodando na parte de trás. "S" sentou na frente com
sua sorridente e divertida mãe. Junto de mim alguns de seus irmãos pequenos. Eu
era o homem mais feliz do mundo, sem saber que estava prestes a receber meu
Oscar na categoria "Melhor Imbecil do Ano". A garota que iria me
fazer a entrega estava ali, com os louros e cacheados cabelos à poucos
centímetros do alcance de meus dedos. Não vestia um daqueles tradicionais e
ridículos vestidos hollywoodianos. Não! O "prêmio" me seria entregue
com ela vestindo calça jeans e blusa branca. Mas estava maravilhosa.
Incrivelmente maravilhosa! Encantadoramente linda. O carro cruzou parte da
cidade de Osasco, em direção a São Paulo. Mas precisamente para o bairro de
Jardim Bom Vista, às margens da Rodovia Raposo Tavares. Todos desceram a porta
de sua casa. Sentei no sofá da sala. Finalmente eu podia conversa. Dizer tudo o
que eu sentia. Contar-lhe meus planos para com ela. No fim, sem que eu
percebesse, o "envelope" foi aberto e eu recebi minha
"estatueta". Com um sorriso lindo, um abraço apertado e um
inesquecível e delicioso beijo, ela anunciou, "gritando"
silenciosamente: "E o Oscar, na categoria "Melhor Imbecil do
Ano", vai para..., César Barbosa!" Resumindo: "S" acabou
sendo "Lilith" em minha vida... - [César]
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