Já foi dito que “tudo
está escrito”. Os árabes acreditam religiosamente nessa filosofia. Quando algo
os acontece eles dizem: “Estava escrito”. A outra frase, “Se Deus quiser”,
também é invenção deles. Aliás, muito usada no Nordeste brasileiro – terra de
muitos “árabes”. Os cruzados a trouxeram até nós. Pessoalmente não gosto de “Se
Deus quiser”. Costumo usar “Com a graça de Deus”. Creio ser mais esperançosamente
positivo. Minha teoria é simples: Se realmente Deus existe, e ama seus filhos,
tudo o que for bom Ele aprova... Vários povos, os orientais em particular,
vivem a vida como uma dádiva do Altíssimo. E com “programação” para uma série
de acontecimentos que nós, ocidentais, em nossa ignorância, chamamos apenas de coincidências.
Também há quem acredite que “coincidência” é quando Criador age no anonimato...
No final de fevereiro
de 1983 eu estava em um consultório de dentista, em São José dos Campos,
interior do Estado de São Paulo, e peguei uma “Veja” para ler enquanto esperava
atendimento. A revista era daquela semana. Trazia em sua matéria de capa assuntos
sobre economia e ciência. Pois bem, nas “paginas amarelas” a entrevista era com
uma professora iraniana (feita em Paris), de 36 anos, membro da elite
privilegiada do país governado por Mohammed Reza Pahlevi. Ela havia sido presa
em 2 de agosto de 1980 – em sua casa em Teerã - e torturada nos porões da
prisão de Evin, sob a supervisão pessoal do aiatolá Sadegh khalkhali. Eficiente líder de tribunais islâmico do “Regime
de Khomeini”. Seu crime: ser amiga de Farah Diba, esposa do xá. A mulher exibia
no corpo marcas horríveis de queimaduras, mutilações na pele das pernas e o
trauma de ter sido sexualmente violentada várias vezes por carcereiros,
policias e outros de seus algozes. Seu nome: “Shahala”.
A “Roda do Tempo”
girou. Voltei para casa em 1984, depois de uma viagem de dois anos: confusa, traumática
e de decisões erradas. Algo que eu
jamais deveria ter feito e que me arrependerei amargamente para o resto da
minha vida – mas isso é outra estória e não desejo falar. Não podemos apaga
nenhuma parte da nossa história. E a história de “Shahala” também ficou para
trás, naquele “pacote” que procuro esquecer. Nunca mais me lembrei daquele
nome, embora, reconheço, jamais tenha esquecido a mulher e aquela sua
entrevista. Casei em maio de 1986. Desde a primeira vez que vi minha futura
esposa, cruzando com ela no Grande Ponto, um ano antes, até o dia em que nos
conhecemos formamente, foi como se o “destino” tivesse nos conduzido até ali...
E que vivêssemos a frutificação da vida. Nossa filha nasceu em 1º de abril de
1988. Pessoalmente eu gosto de nomes como Ana, Beatriz, Carolina, Tereza,
Sílvia, Paula, Cláudia, Lúcia, Fátima, Helena, Carmen, Sofia, Regina, Cândida, Maria
- Alguns desses são doces, outros fortes, puros, outros são misteriosos - mas,
minha mulher comentou que quando morava no Rio de Janeiro, e fazendo comerciais
para a televisão, um dia contracenou com um garoto ruivo e extremamente
sardento. A mãe o levava ao estúdio junto com sua irmãzinha, de nome “Xala”. E Graça
achava bonito. Então decidimos botar o nome da nossa filha de Xala Mariana.
A “Roda do Tempo” girou mais uma vez e, em um dia de 1990, fui bater-papo
na mercearia de um amigo, na rua presidente Gonçalves (antiga Rua ABC) –
presidente Gonçalves foi presidente da Província do Rio Grande no século IXX -,
no Alecrim. Nisso, chega uma mulher para comprar. Meu amigo pediu que eu lhe desse
papel para embalar uma barra de sabão. E me mostrou uma pilha de folhas de
revistas, previamente preparadas, para embalar compras, que estava ao meu lado.
Quando retirei um “peso” que as segurava vi, de cara, a foto de “Shahala” nas
paginas amarelas da “Veja” de 23 de fevereiro de 1983. Em milésimos de segundos
fui a São José dos Campos e voltei. Pedi ao amigo aquelas folhas da tal
entrevista e fui para casa, às pressas, reler aquela história. Estava incompleta.
Faltando paginas. Duas, creio eu. Fiquei quase que petrificado com as folhas em
minhas mãos e as guardo até hoje - um fragmento ilustra este texto. Rememorei
em instante todo o sofrimento que aquela mulher iraniana havia passado, junto
com toda a sua família, e serviu-me para entender melhor o qual é maligno e
insano uma ditadura. Seja de direita (como no Brasil, Argentina, Chile...), de
esquerda (Rússia, Cuba, China, Coreia do Norte...), religiosa (Irã,
Afeganistão...), enfim... Sinceramente não me lembro de como foi, mas, tempo
depois descobri que o nome “Shahala” era um nome árabe que, vindo do anglo-saxão,
junto com outras palavras indiciadas com “sh” – show, shampoo, sheriff - para o
português se transformava em “Xala”.
Outra girada na “Roda do
Tempo”. Um dia recebo uma carta vinda do Irã. Uma “carta nove meses”, como dizia
meu colega de filatelia Mussolini Fernandes, sempre que uma missiva chegava
recheada de selos para colecionadores. O colega, então, apalpava-a e, diante da
protuberância do envelope, fazia comparação a uma mulher grávida. O remetente da
minha correspondência chamava-se Mohamed Ganjoo, da cidade de Shiraz naquele
país persa. Ele colecionava selos do Brasil e me convidava para trocarmos selos
e experiências. Tive com esse senhor uma longa e duradora troca de
correspondências filatélicas. Numa das cartas eu lhe perguntei se ele poderia
me dizer o significado do nome “Shahala”, pois era o nome da minha filha. É claro
que frisei as “convenções” das línguas e tudo o mais. Na resposta meu amigo me parabenizou
pela escolha, dizendo que era um nome comum entre as mulheres árabes. Mais comum
em seu país. Originalmente veio do curdo e descrevia um
tipo de flor. No Irã significava: “Olhar de Gazela”. – (fcb/cp)
Nossa amigo...como percebe, a seqüência temporal que usou para descrição foi incrível! Existe poesia nessa sua crônica tão sensível, apesar do trágico. E de fato, não existe coincidência, e sim sincronicidade! No seu caso uma simples nome próprio que conta uma trágica história e no fim o significado transcendente: "olhar de gazela"! É nessa linha de escrita que você se supera: raciocínio brilhante, reminiscência pessoal, e camadas de significado escondida por trás de suas palavras, sem termos grosseiros! Nisso é o melhor escritor! Gostei demais amigo César! Mande-nos mais! Paz e luz! – Carlos Alberto Bahiense
ResponderExcluir